As Crônicas de Nárnia: um remíx da Bíblia?

Por Fernando Geronazzo

As Crônicas de Nárnia é uma série de sete livros de fantasia, escrita pelo autor irlandês Clive Staples Lewis (conhecido simplesmente como C.S.Lewis). É a obra mais conhecida do autor, e a série é considerada um clássico da literatura infantil, tendo vendido mais de 120 milhões de cópias em 41 idiomas. Escrito por Lewis entre 1949 e 1954, e ilustrado por Pauline Baynes, as Crônicas de Nárnia foram adaptadas diversas vezes, inteiramente ou parcialmente, para a rádio, televisão, teatro e cinema.

Ao ser adaptada para o cinema, o primeiro filme da série, “O leão a Feiticeira e o guarda roupa’, deixam claras a analogia da obra com aspectos da cultura cristã. O interesse de Lewis, cristão protestantes declarado, em “transmitir”, ou simplesmente “remixar” elementos próprios da mensagem cristã pode ser notado com clareza em obras como “Mero Cristianismo”.

A referência aos seres humanos como “filhos de Eva” explicita essa relação entre Nárnia e a Bíblia. No filme da Disney também aparece esse simbolismo. Além dos tradicionais temas cristãos, a série usa caracteres da mitologia grega e nórdica, bem como os tradicionais contos de fadas.

De acordo com Carlos Vargas, professor de Introdução à Filosofia, das Faculdades Integradas Santa Cruz, mestrando em Epistemologia na PUC-PR, o armário “mágico” simboliza a presença oculta e misteriosa do mundo espiritual, que, embora ilimitado, pode ser de alguma maneira contido no nosso mundo natural. “Nárnia é enorme, mas cabe dentro do armário naquele quarto abandonado. O Céu é ilimitado, mas parece poder ser contido, de alguma maneira, nas almas dos santos. É na parte inexplorada da casa, naquele quarto abandonado, que se abre o mundo de Nárnia. É na escondida Nazaré, sem grande valor social, que o Verbo divino nasce” destaca o professor em um de seus artigos.

A descoberta de Nárnia por Lúcia, a menor e mais inocente dos quatro irmãos, simboliza o fato de que é a pureza que permite perceber as realidades espirituais, o que é também é simbolizado pela virgindade de Maria, mãe de Jesus. Este aspecto é confirmado pelo padre e professor Donizete José Xavier, professor de teologia dogmática da Faculdade de Teologia da PUC-SP, que na ocasião do lançamento do filme, chegou a promover debates e reflexões entre os estudantes de teologia e jovens de sua paróquia.

O fato de que os outros irmãos não acreditaram no relato de Lúcia sobre o que viu em Nárnia simboliza a descrença daqueles que não tiveram a experiência da “revelação cristã”. A discussão entre o Professor e Suzana sobre a “lógica” da mensagem de Lúcia simboliza as discussões que os cristãos enfrentam sobre as relações entre “fé e razão”. O estilo pedagógico e racional do professor, de grande clareza e eficiência na argumentação, simboliza a apologética cristã do próprio C.S. Lewis.

A perseguição da feiticeira contra os seres humanos em Nárnia simboliza a perseguição do mundo contra os cristãos. O ódio que ela possuía contra os seres humanos simboliza o ódio infernal do Diabo, segundo a tradição cristã.

Ainda para o professor Vargas, “a neve permanente que cobre Nárnia durante o governo da ‘Feiticeira Branca’ simboliza a frieza e a esterilidade do pecado na vida sem Cristo”. A sedução de Edmundo pela Feiticeira Branca é comparável ao mitos do pecado original contido no livro bíblico do Gênesis.

As brigas infantis entre os quatro protagonistas antes de assumirem seriamente a missão em Nárnia simboliza as disputas entre os apóstolos antes de Pentecostes, assim como as rixas cristãs provocadas por desamor. A comoção e o arrependimento que Pedro, Suzana, Edmundo e Lúcia sentem ao encontrar Aslam, o leão, pela primeira vez no filme simbolizam a consciência do pecado e o arrependimento que o cristão sente diante do Cristo, o que já antecipa algo do juízo final.

A falta de som no encontro entre Edmundo arrependido e Aslam simboliza o isolamento da consciência arrependida na confissão: os pecados confessados só interessam ao próprio pecador e a Nosso Senhor Jesus Cristo. Mesmo que esse, às vezes, seja simbolizado pelo sacerdote – os outros irmãos, ou cristãos, não precisam ficar sabendo.

O acolhimento de Edmundo após sua traição simboliza a volta do pecador arrependido, com a qual os seus irmãos se alegram depois da orientação de Aslam para que não falassem sobre os pecados passados. A busca que os outros irmãos fazem para encontrá-lo simboliza a busca da ovelha perdida relatada nos Evangelhos.

A pergunta que Aslam faz a Pedro sobre sua crença nas profecias de Nárnia simboliza a importância da fé do apóstolo Pedro e da Igreja como um todo nas profecias do Antigo Testamento e do próprio Cristo.

A Lei de Nárnia simboliza a Lei de Moisés do Pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia. A Feiticeira Branca, nesse aspecto, simboliza o diabo que exige para si o sangue dos pecadores. O momento do sacrifício simboliza a “hora das trevas”. O Leão que se deixa sacrificar simboliza o “Messias” inocente que morre pelos pecadores.

A agonia pela qual o Leão passa na véspera do sacrifício simboliza a agonia de Jesus Cristo no Getsêmani. Suzana e Lúcia, nesse episódio, ao consolarem Aslam, simbolizam os apóstolos que estavam mais próximos de Jesus naquele momento: João, Pedro e Tiago.

A pedra que se quebra na mesa da montanha simboliza a cortina rasgada do templo com a morte de Jesus, isto é, simboliza o fim da vigência das leis de Moisés para aqueles que morreram e ressuscitaram com Cristo, conforme a narrativa bíblica da paixão. A ressurreição do Leão simboliza a ressurreição de Jesus Cristo. A presença de Suzana e Lúcia ali na ressurreição de Aslam simboliza o testemunho da ressurreição do Cristo que foi dado por Maria Madalena.

O afastamento de Aslam no final simboliza a ascensão de Cristo. O fato do leão não ser “domesticado” simboliza a “liberdade de Cristo em relação às instituições religiosas. A mensagem dada pelo professor a Lúcia após os créditos, de que ela poderá voltar a Nárnia quando menos espera, simboliza a mensagem profética da volta de Jesus em um momento que ninguém poderá prever, conforme a fé dos cristãos.

No filme, estese muitos outros aspectos são ressaltados, como o momento em que uma das garotas chora com o leão morto em seus braços, analogia clara da famosa Pietà, de Michelangelo.

Deste modo, As Crônicas de Nárnia são um exemplo claro de “remixagem” de elementos de outras obras literárias e culturas, neste caso, a tradição cristã contida nos relatos bíblicos.

  1. Fernando,

    Aprendi muito com seu post. Hoje até fui rever o filme, que tenho em casa e a cena que mais me fisgou foi a “falta de som no encontro entre Edmundo arrependido e Aslam simboliza o isolamento da consciência arrependida na confissão: os pecados confessados só interessam ao próprio pecador e a Nosso Senhor Jesus Cristo.” Não teria feito essa correlação.

    Aproveitando o espaço do comentário. Na marcha tente contar também de forma remixada o que tiver um gancho, cria-se uma narrativa mais saborosa.

    abs

    Pollyana

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